ATA DA DÉCIMA QUINTA SESSÃO SOLENE DA TERCEIRA SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA DÉCIMA PRIMEIRA LEGISLATURA, EM 10.08.1995.
Aos dez dias
do mês de agosto do ano de mil novecentos e noventa e cinco reuniu-se, na Sala
de Sessões do Palácio Aloísio Filho, a Câmara Municipal de Porto Alegre. Às
quatorze horas e dezenove minutos, constatada a existência de
"quorum", o Senhor Presidente declarou abertos os trabalhos da
presente Sessão, destinada a homenagear o Centenário de Dyonélio Machado,
conforme Requerimento nº 134/95 (Processo nº 1265/95), de autoria da Vereadora
Maria do Rosário. Compuseram a Mesa: Vereador Mário Fraga, no Exercício da
Presidência neste Ato, o Senhor Luiz Augusto Fisher, Secretário Substituto da
Secretaria Municipal de Cultura, representando o Senhor Prefeito Municipal de
Porto Alegre, o Senhor Antônio Ribas Pinheiro Machado, Deputado Estadual e
colega parlamentar de Dyonélio Machado, a Senhora Maria Zenilda Grawunder,
Coordenadora do Acervo Literário de Dyonélio Machado, Irmão Elvo Clemente,
representante do Senhor Reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Senhor Paulo Martins Machado, filho e representante da família
de Dyonélio, e, por extensão da Mesa, a Senhora Cecília Bordini, filha do
Homenageado. O Senhor Presidente registrou, ainda, as presenças da Senhora
Lígia Pujol, representante do Centro Social de Quaraí, da Senhora Suzana
Kanter, representante do Instituto Estadual do Livro, do Senhor Gilberto de
Souza Caldeira, da Comissão de Cultura da Prefeitura Municipal de Pelotas,
parentes, amigos e demais convidados. Após, o Senhor Presidente concedeu a
palavra aos Vereadores que falariam em nome da Casa. A Vereadora Maria do
Rosário, em nome das Bancadas do PT, PDT, PMDB, PTB e PP, discorreu sobre a
trajetória pessoal e política do Homenageado, como Médico Psiquiatra e Deputado
Estadual, quando foi perseguido pelos órgãos de repressão e teve seus livros
recusados pelas Editoras. Destacou, ainda, que sua obra é a melhor resposta a
todos que tentaram impedir sua caminhada, parabenizando os porto-alegrenses e
gaúchos por Dyonélio Machado fazer parte da nossa história. O Vereador
Reginaldo Pujol, em nome das Bancadas do PFL e PPR, relembrou fatos da vida de
Dyonélio Machado, dizendo ser um admirador permanente das suas realizações,
como médico, escritor, político, destacando o caráter do Homenageado. O
Vereador Lauro Hagemann, em nome da Bancada do PPS, salientou o caráter
político e humanista do Homenageado, afirmando ter sido um homem incompreendido
e que teve reconhecido o seu mérito somente após a sua morte. Em
prosseguimento, o Senhor Presidente concedeu a palavra a Senhora Maria Zenilda
Grawunder, Coordenadora do Acervo Literário de Dyonélio Machado, que disse
existir na Pontifícia Universidade Católica - PUC, um Projeto de Pesquisa
chamado de "Fontes da Literatura Brasileira", que busca preservar e
recuperar o pensamento das figuras mais importantes da nossa Literatura, e,
entre esses nomes, um dos mais destacados é o do Dyonélio Machado. Relembrou a
extrema lucidez que ele tinha em relação à sociedade em que vivia e o que
desejava dessa sociedade. A seguir, o Senhor Presidente concedeu a palavra ao
Senhor Antônio Ribas Pinheiro Machado, Deputado Estadual e colega parlamentar
do Homenageado, que destacou as qualidades parlamentares de Dyonélio Machado,
considerando-o como o mais brilhante e culto parlamentar daquela época. O
Senhor Presidente registrou, ainda, as presenças dos Vereadores João Dib,
Clóvis Ilgenfritz, Antonio Hohlfeldt e Artur Zanella. Após, convidou os presentes
para uma exposição das obras de Dyonélio Machado, que se encontram no Saguão
desta Casa. Às quinze horas e trinta minutos, nada mais havendo a tratar, o
Senhor Presidente declarou encerrados os trabalhos, agradecendo a presença de
todos e convidando os Senhores Vereadores para a Sessão Solene das dezessete
horas de hoje. Os trabalhos foram presididos pelo Vereador Mário Fraga e
secretariados pela Vereadora Maria do Rosário, Secretária "ad hoc".
Do que eu, Maria do Rosário, Secretária
"ad hoc", determinei fosse lavrada a presente Ata que, após
distribuída em avulsos e aprovada, será assinada pelos Senhores 1º Secretário e
Presidente.
(Obs.: A Ata digitada nos Anais é cópia fiel do documento original.)
O SR. PRESIDENTE (Mário Fraga): Estão abertos os trabalhos da
presente Sessão Solene destinada a homenagear o Centenário de Dyonélio Machado,
conforme Requerimento nº 134/95, de autoria da Vera. Maria do Rosário.
Convido a fazer parte da Mesa: o Sr. Luís Augusto Fisher, Secretário
Substituto da Secretaria Municipal de Cultura, representando o Sr. Prefeito
Municipal; Sr. Antônio Ribas Pinheiro Machado, Deputado Estadual e colega
parlamentar de Dyonélio Machado; Sra. Maria Zenilda Grawunder, Coordenadora do
Acervo Literário de Dyonélio Machado; Irmão Elvo Clemente, representante do Sr.
Reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Dr. Paulo
Martins Machado, filho e representante da família de Dyonélio, e, por extensão
da Mesa, a Sra. Cecília Bordini, filha do homenageado.
De imediato, passamos a palavra à Vera. Maria do Rosário, proponente da
presente Sessão, que falará pela Bancada do PT e também representará as
Bancadas do PDT, PMDB, PTB e PP.
A SRA. MARIA DO ROSÁRIO: Sr. Presidente, Srs.
Vereadores. (Saúda os demais componentes da Mesa.) Senhores e Senhoras.
(Lê.)
"Dyonélio Tubino Machado nasceu a 21 de agosto de 1895, em Quaraí.
No Município situado no extremo oeste do Estado, conviveu com o minuano, o
vento frio que, como ele próprio afirma, 'enche de frieiras todos os dedos do
corpo e, em compensação e por misteriosa alquimia, enrijece a gente contra os
demais frios'. A cidade localizada na divisa entre dois países - Brasil e
Uruguai - o convidaria a transpor as fronteiras entre mito e realidade. A figura do lobisomem, 'o demônio dos fundos de
quintal e das sombras que fazem ao luar as velhas cercas de pedra', e as imagens do Cati e de João Francisco Pereira de Souza, o general castilhista que aterrorizou a região tornando-se quase uma lenda, passeavam na imaginação de seus habitantes. O menino que ouvia esses causos, mais tarde, iria recriá-los nas páginas de seus livros. A cidade natal de Dyonélio o levaria ainda a deparar-se, pela primeira vez, com um sentimento que marcaria toda a sua vida - a solidão. Na campanha, o tempo não passava, e a geografia 'fazia jogo com o tempo: era a vastidão difícil também de encher', o que pode provocar uma 'claustrofobia às avessas'. No pampa, 'o que nos cerca e aprisiona é o infinito', diria o autor em suas memórias.
O jovem que, em 1912, veio para a Capital, aqui se tornou escritor,
médico, dedicando-se à área da psiquiatria, e parlamentar, eleito Deputado
Estadual Constituinte pelo Partido Comunista. E, como intelectual, médico e
político, sabia que 'a liberdade, para o homem, é como a saúde'. No entanto, as
circunstâncias o levariam a definir-se como um homem que teve 'sonhos
frustados', 'liberdade de locomoção tolhida', 'mandato de representação
cassado', 'livros recusados pelas editoras', um homem que viu aumentar em torno
de si 'a área de solidão'. E se, a despeito das inúmeras prisões e impedimentos
que enfrentou, não perdeu a lucidez, isso talvez se deva a dois fatores. O
primeiro é a sua disposição permanente de buscar a liberdade, tendo consciência
de que foi auxiliar da reação contra si próprio desde o momento em que se
colocou contra ela. 'Teria me subtraído a tais vicissitudes com a simples
adesão ao seu modo de sentir, pensar, agir', afirma ele em suas memórias.
'Muitos o fizeram, e, naturalmente, não passaram por nenhum dos dissabores que
me acometeram. Resta, porém, saber se eles são felizes.' O outro fator que deve
tê-lo ajudado a quebrar as barreiras do isolamento é a orientação literária.
Perseguido pelos órgãos de repressão, recusado pelos editores, hostilizado ou
esquecido pela crítica e ignorado por grande parte de seus contemporâneos
durante várias décadas, Dyonélio enviou uma mensagem não para outro lugar, mas
para outro tempo - o futuro. Deixou uma obra que hoje, no centenário de seu
nascimento, continua falando ao público e sendo descoberta por novos leitores.
A obra do escritor é a melhor resposta a todos aqueles que acreditavam
poder cercear completamente sua liberdade ou impedir a sua caminhada. A
literatura de Dyonélio tem o mesmo brilho e o mesmo poder que possui, no
romance 'Guerra e paz', o riso do personagem feito prisioneiro de guerra: 'De
repente ele desatou a rir, com o seu riso jovial e tão forte que alguns
daqueles homens olharam para todos os lados, admirados desse riso estranho e
evidentemente solitário. Pedro ri e diz a si mesmo, em voz alta: - 'O soldado
não me deixou passar. Prenderam-me, encerraram-me. Conservam-me em cativeiro.
Quem, eu? Eu, a minha alma imortal!'
Aqueles que pertencem à minha geração, na sua maioria, conheceram
primeiro o Dyonélio escritor, geralmente acompanhando Naziazeno pelas ruas da
Porto Alegre da década de 30, em 'Os ratos.' O crepúsculo amarelo e as portas
que se fecham, uma a uma, diante do funcionário público que tenta arranjar
dinheiro para saldar a dívida com o leiteiro e evitar, assim, o corte no
fornecimento do leite fazem com que compartilhemos da ansiedade do personagem. No final do livro,
depois de uma longa
peregrinação e do sono marcado por um pesadelo (Naziazeno sonha que os ratos haviam roído o dinheiro conseguido com tanta dificuldade), o personagem ouve, aliviado, o barulho do leiteiro que chega e o jorro 'forte, cantante', do leite sendo despejado na panela.
O livro chega ao fim, mas a pergunta permanece na mente do personagem e
continua ressoando dentro de nós: - 'O que é que vai fazer para dar uma solução
definitiva à sua vida?'. Foi na tentativa de construir uma resposta para essa
indagação que optei pela militância e reencontrei Dyonélio Machado. Descobri
outra face do homem que tanto me impressionara pelo vigor da sua obra ficcional
quando tomei conhecimento de sua intensa participação nas lutas políticas que
visavam a dar um novo rumo ao País. A solidariedade para com os humildes e
injustiçados, a denúncia da violência supostamente legal e da inversão dos
padrões da ética, a preocupação em ouvir os eleitores que o haviam feito Deputado,
a inconformidade diante das intransigências da direção do partido ao qual
pertencia e a fidelidade aos ideais socialistas são apenas alguns dos traços
que caracterizam o político Dyonélio Machado.
O perfil de Dyonélio como ser humano, escritor, político e médico é que
motiva esta homenagem no mês em que se comemora o centenário do seu nascimento,
e as homenagens são necessárias porque o tempo, assim como os ratos, pode roer
a memória dos homens. Tomando emprestada uma expressão cunhada pelo próprio autor,
podemos dizer que lembrar Dyonélio Machado é como jogar 'no ar um punhado de
alfinetes encantados', que opõem 'uma muralha viva' entre o seu nome e o
esquecimento. Ao assumirmos esse compromisso tão agradável de ser cumprido,
nós, que representamos a população de Porto Alegre nesta Casa, queremos nos
somar aos amigos do escritor, aos críticos de sua obra, à imprensa, aos
estudantes e professores, aos seus fiéis leitores, a todas as pessoas e
instituições que preservam a sua memória e, de modo especial, aos seus
familiares e à Profa. Dra. Maria Zenilda Grawunder, que coordena o Acervo
Literário Dyonélio Machado, vinculado ao Centro de Pesquisas Literárias do
Curso de Pós-Graduação em Letras da PUCRS.
E justamente porque foi acompanhando Naziazeno em suas andanças que
conheci Dyonélio é que finalizo evocando, dentre as inúmeras facetas de sua
personalidade, aquela que ficou eternizada pelas fotografias que reproduzem a
imagem de um caminhante, o homem de chapéu e bengala que andava pelas ruas da
Capital. Em homenagem a este homem, leio alguns versos que Carlos Drummond de
Andrade dedicou a Charles Chaplin:
'Bem sei que o discurso, acalanto burguês, não te envaidece, / e
costumas dormir enquanto os veementes inauguram a estátua (...) / Não é a
saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço, / (...), mas a de
homens comuns, numa cidade comum (...). / Falam por mim os abandonados de
justiça, os simples de coração (...) / E já não sentimos a noite, / e a morte
nos evita, e diminuímos/ como se ao contato de tua bengala mágica voltássemos /
ao país secreto onde dormem meninos. / (...) e vamos contigo (...) / e na
pessoa humana vamos redescobrir / aquele lugar - cuidado! - que atrai os
pontapés: as sentenças / de uma justiça não oficial.'
(Não revisto pela oradora.)
O SR. PRESIDENTE: Registramos a presença da
Sra. Lígia Pujol, representante do Centro Social de Quaraí; da Sra Suzana
Kanter, representante do Instituto Estadual do Livro; do Sr. Gilberto de Souza
Caldeira, da Comissão de Cultura da Prefeitura Municipal de Pelotas; de
parentes, amigos e demais convidados.
Com a palavra, o Ver. Reginaldo Pujol, representando as Bancadas do PFL
e PPR.
O SR. REGINALDO PUJOL: Sr. Presidente, Srs.
Vereadores. (Saúda os componentes da Mesa.) A coincidência dos festejos de
Dyonélio Machado, em 21 de agosto de 1895, impuseram que esta Sessão se
realizasse nesta hora, por ser a data mais próxima do acontecimento. Os afeitos
à vida parlamentar, particularmente o Dr. Pinheiro Machado, sabem que as Casas
Legislativas têm alguns ritos praticamente superados. Este horário é,
regimentalmente, dedicado à reunião das Comissões Técnicas, razão por que a
Casa não está aqui presente na sua plenitude, como seria lógico, conseqüente e
natural, tamanha é a dimensão do nosso homenageado. Pessoalmente, superei
alguns obstáculos, porque acredito que a proposição firmada por todas as
Lideranças da Casa e iniciada pela diligente Vera. Maria do Rosário não poderia
deixar de contar com a minha concordância, apoio e assinatura, porque uma razão
muito pessoal, particularíssima, fez-me um admirador permanente do homem
Dyonélio Machado. Mais do que o médico, mais do que o escritor, mais do que o
político, mais do que o homem de idéias, muito cedo - nos idos de 43 ou 44 -
conheci o homem Dyonélio Machado como um conterrâneo ilustre da minha Quaraí,
que, aqui em Porto Alegre, se iniciava em algumas atividades e em alguns
meandros da Medicina que, à época, eram quase proibidos, dada a sua inovação.
Meu pai foi um de seus pacientes, e eu não exageraria ao dizer que a
pertinácia do seu atendimento médico, aliada às inovações que a ciência médica
viveu naquele momento, deu a meu pai - falecido há quatro anos - algo em torno
de quarenta anos de vida. Por isso, eu não poderia, de forma alguma, fugir da
alegria de estar reverenciando a figura de Dyonélio Machado, que, além de ter
comigo e com minha família esses laços tão diretos, ainda honra, sobremaneira,
uma geração de gaúchos e, sobretudo, coloca a minha Quaraí - a Quaraí que foi
seu berço e de outros conterrâneos, como Cyro Martins e Lilia Ripoll -
definitivamente nas letras do Rio Grande. Além do mais, a agradável
circunstância de estarmos hoje aqui numa convivência multipartidária me deixa
com absoluta tranqüilidade para fazer uma referência elogiosa ao perfil
político de Dyonélio Machado, que, pela sua formação ideológica, não é
exatamente aquele que costumo professar, pelas minhas convicções liberais. Mas
eu não exageraria ao dizer que, se um dia eu fosse tentado pelas posturas
radicais de fazer o "anti" e não o "pró", jamais poderia
fazer o anticomunismo, sabedor que sou que um homem do perfil do Dyonélio
Machado foi, junto com o senhor, Dep. Pinheiro Machado, representante desse
Partido na Assembléia Legislativa do Estado e que, na oportunidade,
por aqueles
laços sentimentais que já confessei, entre os seus eleitores ele não podia incluir a mim, menino à época, mas incluiu, com certeza, o voto de minha mãe, que, por estar doente, impossibilitada de se deslocar, não comparece hoje aqui para junto comigo aplaudir a obra de Dyonélio Machado e, mais que isso, seu perfil de homem, de cidadão, de escritor e, sobretudo, a sua condição de ser humano magnífico, dotado de altruísmo.
Quero que o ilustre filho aqui presente leve consigo, como uma das
maiores razões do profundo respeito que eu, a minha família e aqueles que
conheceram seu pai obrigatoriamente têm que possuir, a dimensão gigantesca do
seu genitor. Esta e a homenagem em meu nome, em nome do PFL e do PPR. Muito
obrigado. (Palmas.)
(Não revisto pelo orador.)
O SR. PRESIDENTE: O Ver. Lauro Hagemann está
com a palavra pela Bancada do PPS.
O SR. LAURO HAGEMANN: Sr. Presidente, Srs.
Vereadores. (Saúda os componentes da Mesa e demais presentes.) Por uma razão
muito óbvia, eu não poderia deixar de comparecer a esta Sessão de homenagem ao
centenário do nascimento de Dyonélio Machado. Dyonélio é uma figura que ilustra
o Rio Grande e preenche esse nosso século XX nas letras, na ciência, na
política, mas, sobretudo, no humanismo - um homem que significou no seu tempo.
Consideremos este Rio Grande, no início deste século, por todo este século e
até há dez anos atrás, quando do desaparecimento de Dyonélio. É um período da
nossa história repleto de acontecimentos, imprevistos uns, inesperados outros,
mas certamente a roda da história continua a girar, e Dyonélio soube respeitar
este giro permanente. Como missioneiro, Dyonélio tem uma participação muito
especial na vida deste Rio Grande e de Porto Alegre, que foi a sede de sua
atividade principal durante a maior parte da sua vida.
Cumpre, neste momento, o dever muito pertinente de homenageá-lo, porque
foi aqui que ele desenvolveu a sua atividade, foi aqui que ele se tornou gente,
que pôde se aprimorar para beneficiar os seus conterrâneos sob as formas
variadas pelas quais ele beneficiou os gaúchos. Um homem incompreendido,
praticamente só depois da sua morte é que ele teve reconhecido o seu mérito,
mas em vida ainda, em algumas circunstâncias muito especiais, ele teve esse
reconhecimento. Hoje, ainda, um velho companheiro de partido me relatava que,
numa determinada época, ele, sendo reconhecidamente um homem de idéias
diferentes, foi homenageado por um governante gaúcho com um cargo de confiança
num dos hospitais psiquiátricos de Porto Alegre e, numa medida inusitada, foi homenageado
pelos seus colegas médicos com um jantar, não pela sociedade, mas os médicos do
hospital é que resolveram homenagear o colega que havia sido indicado para
dirigi-los. Talvez Dyonélio não tivesse recebido bem esta homenagem pelo seu
caráter arredio a este tipo de manifestação, mas não podemos deixar de
considerar - e este é o aspecto que quero frisar mais detidamente - o caráter
político da vida de Dyonélio.
Dyonélio emerge de um complexo de intelectuais gaúchos quando da
redemocratização do País. Terminada a Segunda Guerra Mundial, em que o fascismo
fora derrotado pelas forças libertárias, em que o mundo socialista se
apresentava diante do cenário como uma força capaz de contribuir para a
revolução mundial, Dyonélio, que já professava idéias socialistas, resolve
militar no Partido Comunista Brasileiro. Como tal, no breve período de
legalidade do Partido, com a queda de Getúlio em 1945 e até 1947, ele foi um
dos expoentes do Partido no Rio Grande do Sul, a ponto de se tornar um dos
Deputados Constituintes gaúchos, juntamente com o Dr. Antônio Pinheiro Machado,
com o Dr. Otto Alcides Ohlweiller, que era outro expoente da intelectualidade
gaúcha. Essa bancada produziu contribuições notáveis à primeira Constituição
Estadual pós-guerra, no período da nossa mais recente modernidade.
Mas Dyonélio, um homem voltado inteiramente para o culto da liberdade,
para a ascensão do homem, humanista, sofreu as injunções. Neste momento, devo
fazer um registro: o Partido Comunista agiu muito mal com os seus intelectuais,
não só com Dyonélio, com muitos outros, inclusive com Jorge Amado, que está
vivo ainda hoje, com Graciliano Ramos, com muitos outros, nomes conhecidíssimos
da história literária deste País. Isso se deve a um período de muita
conturbação e de confusão ideológica. E Dyonélio foi uma das vítimas desse
processo. Naturalmente arredio e irreverente como era, se recusou a participar
de muitas coisas, embora tivesse, num período de militância ativa, participado
das atividades normais do Partido. Mas é sobretudo este caráter humano de
Dyonélio que devemos reverenciar. À parte a sua contribuição literária,
científica, um ilustre psiquiatra, um dos introdutores da psiquiatria no nosso
meio, um político notável, um homem coerente com suas idéias, ele foi,
sobretudo, um homem no sentido lato da palavra.
Por isso, como representante do PPS, herdeiro do Partido Comunista,
saúdo esta comemoração, fazendo-a integrar-se ao calendário das comemorações
com o nome de um dos homens mais notáveis do Rio Grande, não como um elemento
deletério, como nós, comunistas, sempre fomos tidos - que nós vínhamos para
destruir. Não, nós viemos para construir o mundo novo que Dyonélio apontou
através de sua obra e de sua vida. Muito obrigado.
(Não revisto pelo orador.)
O SR. PRESIDENTE: Registramos a presença em
Plenário do Ver. João Dib, Líder do PPR nesta Casa, que foi representado, nesta
homenagem, pelo Ver. Reginaldo Pujol.
Concedemos a palavra à Sra. Maria Zenilda Grawunder, Coordenadora do
Acervo Literário de Dyonélio Machado.
A SRA. MARIA ZENILDA
GRAWUNDER:
Sr. Presidente, Srs. Vereadores. (Saúda os componentes da Mesa.) Senhoras e
Senhores, como responsável pelo Acervo Literário de Dyonélio Machado, vou começar lembrando que a PUC
tem
um projeto de pesquisa que se chama "Fontes da Literatura Brasileira", que se desdobra em vários projetos nos quais se busca preservar e recuperar o pensamento das figuras mais importantes da nossa Literatura para que essas coisas não se percam e que sejam divulgadas nos futuros estudos da nossa história literária. Entre esses nomes, um dos mais importantes, sem dúvida, pela grande representatividade que teve não apenas na Literatura, mas em todo momento histórico e político do Rio Grande do Sul, é o de Dyonélio Machado.
Comecei a estudar a vida e obra de Dyonélio Machado depois de sua
morte. Não tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente, mas passei a conhecê-lo
através de entrevistas, primeiro com a saudosa Dona Adalgisa Machado, sua
esposa, com quem comecei o trabalho - tinha uma memória excepcional e era uma
criatura excepcional também, uma espécie de anjo da guarda de Dyonélio Machado,
que com ele sofreu muitos percalços da vida política -, também através dos
materiais por ele legados, que trazem grandes informações sobre seu pensamento
e sobre a sua obra.
Num desses materiais, encontro, de Dyonélio, o seguinte: - Resposta a
um entrevistador: "Você me fala em dados biográficos. As biografias mais
sucintas, com poucos dados, logo são as que mais valem por porem em relevo os
únicos aspectos que importam. Você conhece a de Ramálio Urtigão, traçada por
Eça de Queiroz? Não é bacharel e tem saúde." - em 1975. Respeitando,
então, essa opinião de Dyonélio Machado sobre as biografias literárias, nós
vamos resumindo aquilo que muitos já destacaram aqui sobre ele: uma pessoa
absolutamente íntegra, culta, coerente com as suas idéias em todas as
atividades em que se destacou, entre as quais as principais foram a medicina
psiquiátrica, a literatura, a política e o jornalismo - assim lida, ao pé da
letra, essa tirada de Dyonélio, não apenas uma tirada irônica sua ao final da
vida. Mas esse diálogo biográfico de Dyonélio Machado, de certo modo, tem que
ser um pouco contrariado a partir de agora, porque sua vida e obra escapam
dessa síntese mínima.
O psiquiatra, político, escritor e jornalista, após 89 anos de
existência, deixou, juntamente com essa imagem de profissional humanista e
homem íntegro, uma excepcional trajetória de lutas acentuada pelo descompasso
entre a sua personalidade e de certa forma desconcertante como polemista e as
formas como se apresenta na política partidária e fora dela em relação ao
autoritarismo brasileiro. Eu me permitiria tentar ver nesses quatro grandes
aspectos da atividade profissional e literária de Dyonélio, como jornalista,
político, literato e psiquiatra, o que houve de relevante, dito, muitas vezes,
pelas palavras de quem com ele conviveu.
Podemos começar com a personalidade de Dyonélio psiquiatra. Como tal,
foi Diretor do Hospital Psiquiátrico São Pedro por várias décadas, homem que
ali criou uma sala de praxiterapia para o tratamento daqueles pacientes que
precisavam da atividade da arte, do artesanato, como terapia mesmo. Vou usar,
segundo as palavras do Dr. Cláudio Osório, aqui presente, como Dyonélio
descreve no seu livro "Por uma definição biológica do crime", pág. 5.
Ele, entre 1930 e 1932, se dedicou ao projeto científico desse livro com uma
constante inquietação e um prazer. Na sua tese, ele faz uma concepção do delito
e do homicídio como fenômeno na natureza em função direta
da psicologia e do estado mental do criminoso, e seria um resultado pré-psicótico correlacionado com a psicopatologia do caráter e da personalidade. Diz o Dr. Osório: "Embora concluísse pela influência secundária da sociedade, dando preponderância ao fator psíquico individual, Dyonélio antecipava as atuais concepções da criminologia e da vitimologia ao identificar o que ele chamou de dúplice atitude do meio social, consentindo e punindo sucessivamente as coisas mais práticas. Uma e mais décadas depois", continua o ensaísta, "outros pesquisadores ampliavam esse conceito da dúplice atitude do meio social."
A tese de Dyonélio Machado é exemplar, no conteúdo e na forma, para os
que se iniciam na pesquisa científica. Inclusive, o autor chamou de sua
profissão-de-fé científica, admitindo o seu mal disfarçado entusiasmo pelos
mecanismos psicológicos. Ele reconhece e se contenta com a semiverdade das
explicações provisórias da Psicanálise e para as manifestações neuróticas
apenas na pauta de chaves anatomofisiológicas.
Osório cita, ainda, o exemplo de que, percebendo que os pacientes
necessitavam de uma canalização socialmente aceita, com os escassos recursos do
Hospital Psiquiátrico São Pedro, Dyonélio conseguiu, através de criteriosa
seleção de atividades materiais, instalar a sala de praxiterapia, bem na linha
de propostas modernas da década de 40.
Outra faceta de Dyonélio médico está presente no seu livro publicado
sob o título: "Eletroencefalografia, 1944 - Uma criteriosa revisão
bibliográfica sobre o sistema dos efeitos não desejáveis do tratamento
biológico no sistema nervoso central". Dyonélio foi à Argentina e estudou
a aplicação de eletroencefalograma. E impressiona, no relatório técnico, além
desse cuidado revelado por ele na metodologia e apresentação científica, também
a atualidade do tema. Os modernos hospitais psiquiátricos já têm acoplado a
seus aparelhos um eletroencefalógrafo, bem na linha das preocupações de
Dyonélio há 50 anos.
Dyonélio foi corajoso profissional, o que custou caro em exílios e
prisões, disse o Dr. Cláudio. Por trás dessa coragem e da sua neutralidade
diante das teorias dos diferentes modelos explicativos da Psicanálise e da
Psiquiatria, está a identidade pessoal e profissional, que pressupõe
continuidade, coerência e fidelidade às suas idéias e ideais.
Dr. Dyonélio no jornalismo, outra área destacada de suas atuações.
Passou do jornalzinho de infância ao jornalzinho político. Faço minhas as
palavras de Dyonélio. Também nessas entrevistas, em memórias, aqui diz: "A
minha experiência jornalística tomou várias formas, sem nunca assumir o caráter
de uma profissão. Quando guri, era o jornalzinho manuscrito, invariavelmente
crítico e literário; não ria para o primeiro termo do binômio; havia o próprio
guri da parte literária, um tio escrivão, um amigo farmacêutico, o pai de um de
nós, menos, naturalmente, o meu, que teve morte repentina aos 33 anos de idade
e deixou-me, o filho mais velho, com apenas sete anos. A impressora era uma
prensa que era usada como copiadora da correspondência. Esse jornal tinha um
título que bem traduzia a finalidade a que se propunha - ‘O martelo’. E quantas
marteladas demos mesmo nos outros guris! Mas o curioso é que algum
amador
de velharias obteve o número da folha e dela fez referência numa história de preces na província." Do jornalzinho de infância, e por obra do ambiente, subiu para imprensa política.
Em 1921, já em Porto Alegre, funcionário da Secretaria de Obras
Públicas, Dyonélio Machado, com o Dr. Teófilo de Barros e Souza Júnior, fundou
e dirigiu o jornal "A informação". Esse jornal tinha ligações com o
jornal "A federação" e expressava o pensamento político do Partido
Republicano Rio-Grandense, dirigido por Borges de Medeiros. Esse jornal teve
duração de 1921 a 1922, quando, encerradas as eleições, foram ao Palácio os
seus dirigentes e deram por encerrada a atividade do jornal, considerando que,
segundo as suas memórias, a atividade do jornal terminava onde começava a
atuação do voto.
Em 1922 ele dirigiu "O farrapo" com o mesmo grupo editorial,
que também tratava de política, além de literatura e arte. Além disso, na área do jornalismo, Dyonélio Machado dirigiu
a "Tribuna gaúcha", em 1946, junto com Décio Freitas. A par dessas
atividades jornalísticas que ele dirigiu e era o fundador, também escrevia nos
principais jornais não só de Porto Alegre, mas também do Brasil: ensaios,
crônicas, etc.
Na literatura, Dyonélio Machado, desde 1935, quando soltou ao mundo os
seus ratos urbanos, ocupou-se das palavras e angústias que corroem o viver e o
dia-a-dia da maioria socialmente desfavorecida das cidades. Desde 1915 começou
a publicar ensaios, crônicas e contos, sendo as primeiras crônicas no jornal do
Alegrete, em 1915. Escreveu "Política contemporânea", em 1923;
"O estadista", um manuscrito inédito, escrito em 1926, que quase este
ano vem à tona por ocasião de uma edição comemorativa do seu centenário, que se
chamará "O cheiro de coisa viva", editada pela Gráfica Editorial do
Rio de Janeiro. Escreveu "Um pobre homem", livro de contos que, em
1927, foi o seu primeiro livro de ficção publicado. Escreveu "Uma
definição biológica do crime", também já citado, em 1933, e mais os
romances "O louco do Cati", "Desolação", "Sol
subterrâneo", "Fada", "Ele vem do fundão" e, por fim,
foram publicadas, postumamente, "As memórias de um pobre homem".
A sua literatura teve textos incompreendidos em estilo e temática, e
também o estigma das idéias socialistas de certa forma fez com que muitas de
suas obras, de linguagem enxuta, substantiva, do mundo dos mecânicos, detentos,
marginais e homens comuns, não tivessem muita aceitação por parte das editoras,
que não consideravam os livros de fácil leitura e, portanto, não vendáveis, sem
grande interesses comercial. As suas personagens estão ora na geografia de
Porto Alegre, nas ruas, pensões, átrios, cubículos do Rio e São Paulo, no
cárcere, ora no desolado, pobre e descampado litoral gaúcho. Nos pobres
cenários, suas personagens estão sempre se envolvendo em conflitos e dilemas
pessoais, sociais e realistas com definida opção pelo espaço das cidades e a
degradação de valores. A sua palavra contundente à temática realista e
psicossocial também afetou a sua carreira literária tardiamente reconhecida.
Todavia, com a originalidade e linguagem de densidade dramática que os
caracterizam, valorizados e premiados pela crítica nacional - mais
especificamente do Rio e São Paulo -, os textos do autor, apesar dos problemas
editoriais, tiveram o seu reconhecimento, ainda que tardio, por todos aqueles
que apreciam uma literatura coerente, profunda e que pode orgulhar a todos os
gaúchos.
Como estamos num ambiente bastante interessado em política também, vou
sintetizar algumas idéias de Dyonélio Machado, como vistas e expostas por ele
mesmo em entrevistas ou nas suas memórias. Eu diria que a voz reflexiva do
político da sua história sente-se não apenas nessas coisas que disse a respeito
de suas idéias políticas, mas sente-se em toda a sua obra. Nesse ponto,
percebe-se a coerência do homem e do humanista - já destacadas aqui -, um homem
de convicções firmes, que as levava para todas as suas áreas de atuação.
Em 1980, diz Dyonélio que sua opção pelo comunismo ocorreu dentro da
cadeia. "Antes" - diz ele - "até integrei um colegiado que
dirigia o Partido Republicano aqui." Perguntou o entrevistador: "Qual
o seu papel na Revolução de 1923?" Ele diz: "Fui muito amigo do Dr.
Borges de Medeiros, do Dr. Protásio Alves e de toda a cúpula do Partido
Republicano. Minha família esteve envolvida com a política e eu sempre fui
político. Mesmo na década de 30, fui solicitado para cargos eletivos." Diz
ele: "Na época, o Partido Republicano vinha ao encontro das aspirações
populares. O positivismo professava uma espécie de socialismo estatal. Nunca se
esqueçam de que nós tínhamos a Viação Férrea estatizada, caso raro no Brasil.
Tentamos criar o imposto progressivo sobre a terra, tentando utopicamente
distribuir o latifúndio. E tem mais: o tempo era de grande liberdade. Eu venho
da Revolução Francesa. Olha para a estátua que existe na Praça da Matriz e
verás: 1789. A Revolução Francesa não gerou o positivismo, que foi uma das
tantas coisas que vieram naquele turbilhão que ela abriu. Eu fui um entusiasta
de Augusto Comte: tenho trabalhos dele, estudei, escrevi sobre isso; era um
socialista de Estado. Uma vez na cadeia, aqui, recebi a visita do Gen. Paim
Filho. Tínhamos uma grande diferença de idade, de posição social, mas ele foi
visitar a mim, como eu fui visitá-lo no Rio de Janeiro, e lamentou a situação
em que eu estava, preso na Brigada Militar. Eu disse que ele era o responsável,
porque eu havia defendido uma coisa que eles me haviam ensinado. É, foi assim
que eu respondi. Assim foram os homens políticos que rodeavam a política
republicana da época. Nessa escola eu me formei. Apenas depois procurei evoluir
nesse socialismo, enquanto alguns mestres iniciais ficaram estacionados. Os
políticos daquele tempo me ensinaram que o melhor era o socialismo; apenas fui
um pouco mais adiante." Ele diz ainda: "Eu tenho duas vidas: uma
antes e outra depois da prisão, mas nunca fiz política na ficção; fiz política
nas praças, na Assembléia, na polícia."
Em 1935, ele integrou-se ao movimento Associação Libertadora Nacional,
que era um movimento das esquerdas brasileiras, baseado nas frentes liberais
que estavam se instalando na Europa. Na condição de dirigentes da Associação no
Rio Grande do Sul, eles fundaram, em julho de 1935, o Diretório Regional. Em
seguida, essa Associação, cassada pelo Governo Getúlio Vargas, pelos ataques
que a ele dirigia, teve fechadas suas sedes nacionais. Em protesto, aconteceu uma
greve dos gráficos que estava sendo articulada por Dyonélio, quando ele foi
preso, naquela mesma noite. Em entrevista, já na prisão, em 4 de novembro de
1935, diz Dyonélio para Carlos Reverbel,
para o jornal "A razão", de Santa Maria:
"Faz dezessete dias que foi proferida a sentença condenando-me ao
grau submédio da pena, a dez meses e meio de prisão e até agora o juiz não teve
a oportunidade de resolver sobre o ‘sursis’ impetrado a meu favor. A velha
inspiração popular de uma justiça rápida continua sendo, apesar de todos os
esforços, às vezes extremos, para se materializarem, um simples sonho ingênuo
de nosso povo, sonho que não morrerá porque não estão, felizmente, perdidas
todas as esperanças. Ponto importante de um movimento revolucionário triunfante
de 30, que logo ficou esquecido mal se apossaram do poder aqueles que, durante
a campanha de propaganda, tanto preconizavam e defendiam. A justiça é para a
sociedade o que a medicina é para o indivíduo: ela é um remédio social de que
depende a saúde de um povo. Qualquer decisão jurídica representa um benefício
para a comunidade, benefício que se confunde com a sua própria vida. Por isso
ela é composta de indivíduos e tudo o quanto respeita a um deles diz igualmente
respeito a todos. A sociedade tem tanto interesse em punir como absolver; a
Justiça é, pois, uma assistência preparada para prestar à comunidade em todo
comparável à assistência que o médico consagra aos seus pacientes. Há quase
quatro meses que a minha paisagem é essa água pardacenta, é uma tristeza."
É necessário notar-se que, integrado ao Movimento Nacional Libertador,
aconteciam os movimentos no Nordeste, a que Dyonélio estava sempre bem atento.
Ainda sobre a prisão no Rio de Janeiro, ele relembra que esteve preso na Frei
Caneca e que, sobre a sua prisão, segundo ele próprio, a sua reação foi boa.
Diz que não chegou a ser espancado e que na cadeia mandava para o Café Filho
uns memoriais, relatórios que importunavam a polícia, depois contava as
torturas que eram impostas e ao mesmo tempo davam notícias dos companheiros, de
como prosseguia o Movimento.
Antes de concluir, eu gostaria de lembrar mais algumas idéias que
Dyonélio tinha sobre sua atuação política, que se manifestaram no Movimento dos
Escritores, em 1945, em que ele achava que havia uma certa apatia e falta de
combatividade dos escritores, o que comprometia a cultura do País. Então, ele
relembrou: "Eu inaugurei a Lei de Segurança Nacional; fui o primeiro preso
em 1935, na ditadura de Getúlio; fui preso em Porto Alegre e levado para o Rio.
Naquela época, escritor e jornalista não valiam nada, eram considerados
marginais, beberrões. Procurava-se desacreditar quem tivesse idéias contrárias
ao regime e buscasse expressá-las. Um exemplo disso é que, numa sindicância, o
encarregado comentou: ‘Este não precisa averiguar; é escritor’. Era uma classe
da qual não se esperava um ato de coragem."
Causou muita surpresa quando houve o I Congresso Brasileiro de
Escritores, no dia 27 de janeiro de 1945, no Teatro Municipal de São Paulo. Os
escritores brasileiros, conscientes das suas responsabilidades na interpretação
e defesa das aspirações do povo, naquele momento histórico declaram e adotam
princípios, entre eles, a legalidade democrática como garantia de completa
liberdade de culto e de segurança, contra o temor da violência e pelo direito a
uma existência digna. Declaram que o sistema de governo eleito pelo povo
mediante sufrágio universal direto e secreto (...); que só o exercício da
soberania popular torna possível a paz e a cooperação internacional e
consideram urgente a necessidade de ajustar-se à organização política do Brasil
e aos princípios enunciados pelos quais se batem as Forças Armadas e as Nações
Unidas. Ele diz que o manifesto teve e continuará tendo uma grande importância
histórica porque ousou denunciar a censura, a opressão de uma época em que se
queimavam livros.
Deputado em 1946 pelo Partido Comunista do Brasil, durou pouco a sua
atuação parlamentar porque, com o Governo Dutra, acabou. Quando da cassação do
seu partido e dos mandatos dos Deputados Júlio Teixeira, Sr. Pinheiro Machado
Neto, aqui presente, e Dyonélio Machado, ele registra, nas suas memórias, que
eles permaneceram no Plenário até o final da Sessão. Diz ele: "O eleitor
que em nós votou nos queria naquela representatividade, naquela Casa; se dali
saímos foi por causa da arbitrariedade que no momento detinha a força; de nossa
parte, tudo empenhávamos para permanecer no posto, que não era de mais ninguém
do que do povo que elege. Fica aí uma compensação. Quem saiu aquele dia do
Plenário da Assembléia, da Sessão ilícita, pela matéria espúria que votava, foi
o resto da Assembléia e não nós, que permanecemos ali falando ao povo das
galerias."
Acho belíssima uma fotografia que a família guarda, onde os três,
vestidos de terno branco, saem da Assembléia, naquele dia, com todo o orgulho
de Deputados eleitos pelo povo.
Diz ainda: "Um trabalho político, que era esse o seu caráter na
ocasião, agora, numa evocação tardia, assume um aspecto pessoal, negativo no
seu individualismo; não se sente o esforço coletivo que é característico da
história; não se vê a marcha incessante dos fatos que constituem a circulação
nas rotas dos acontecimentos. Mal se presente a luta pelo vago que acompanha as
imagens que dela restam nestas memórias, quando muito, flagrantes de
biografias. Curiosos, como tudo que diz respeito ao homem, e por isso
interessante, quem sabe até senão românticos." Ele diz: "Hoje sinto
falta em tudo o que fiz por um ideal político de um elemento que certamente não
estava em mim pela simples e imperiosa razão de não possuir eu a matriz
original em que cada coisa se forma. Onde estavam, então, os companheiros de
bancada - impossível reunir melhor: Antônio Pinheiro Machado Neto; Júlio
Teixeira, no forte da refrega; Jover Teles, corajoso representante dos
mineiros; Otto Alcides Ohlweiller, servido por sólida cultura científica. Em
cada um deles podia eu, ocasionalmente, me amparar; de todos eles, em conjunto,
podia receber a seiva com que se nutria a minha combatividade. Apesar de ser líder,
o mais velho deles, sempre me considerei um subalterno perante tais
companheiros. Júlio Teixeira e Pinheiro Machado Neto dotaram a bancada de um
vigor que tiravam das suas origens, da sinceridade, coragem e capacidade
intelectual destes queridos camaradas. Eles traziam um tão grande sentido de
objetividade que davam autenticidade ao nosso esforço e novo aspecto aos fatos
em apreciação. Impossível resistir-lhes pela dialética; contra isso só a força,
em toda a sua brutalidade primária; lutamos juntos, lutamos até o fim. Quando
uma violência era uma bala que ameaçava Júlio Teixeira, Pinheiro e eu nos
achávamos em cada um dos seus flancos para, como segundos, numa luta livre,
dar-lhe toda a assistência, mas toda que ele necessitasse. O mal que gerou a
nossa inoperância não se achava em nós; era um mal da coletividade. De resto, é
fácil concluir, assim, quando a reação nos expulsou dos nossos postos de
combate, tão legítima e bravamente conquistados. A massa parece não ter tido
sensibilidade política para ver que nas nossas humildes pessoas ela é que
realmente estava sendo ferida, e profundamente ferida, como se viu."
Aqui, mais uma vez, Dyonélio ressalta do grupo um aspecto que também
era muito particular seu: a humildade. Apesar de certos depoimentos de amigos e
conterrâneos, ouvi dizer que ele era um homem vaidoso, mas ao mesmo tempo de
extrema modéstia, e isso, às vezes, prejudicou o seu maior reconhecimento.
Em "Revelações e Reflexões", que ele faz, ele traz uma frase
muito interessante sobre as épocas. Ele diz: "Se eu dissesse que cada
época tem o seu cheiro, ninguém estranharia, para não aludir senão às coisas
que nos ajudam na gira da vida, como se uma fatalidade nos impelisse sempre a
um eterno andejar; lembraria apenas o cheiro de coisa viva, de coisa irmanosa,
que têm os animais de tiro, quando, para melhor se irmanarem conosco, seus
iguais e seus senhores, apelam para toda a força de tração que sabem possuir e
que nós lhes exigimos."
Não é fácil compreender uma época, embora distante, quando ela permanece
atual. Segundo ele, "ainda vivemos no mesmo ambiente social e político de
então, em 1971, ano em que escrevo. Nada mudou. Os franceses, sabendo como
ninguém dar nomes aos bois, acentuavam a diferença que existe entre atos
inspirados por pensamentos elevados, porque altruístas, e os que alguém pratica
impelido por moldes egoísticos, muitas vezes covardes. Que importância atribuir
à abertura política da década de 70, à liberdade de imprensa, no começo de 80,
à abolição de atos inconstitucionais, à anistia e à volta de exilados, à
publicação gradual de livros engavetados? Não sou mais político que ande
examinando uma situação que demande em si mesma muita convivência com os fatos.
Em idade avançada já não posso opinar sobre qual seja a vida política do Brasil,
mas considero apenas possibilidade, mesmo remota, de alguma evolução positiva
em nosso sistema social, uma melhoria aqui e ali no controvejar de muitos
foguetes. Um aumento do salário mínimo que logo se desfaz com a elevação do
custo de vida; eis a filosofia populista e a tudo quanto no momento
espero".
Eu terminaria por aqui essa visão rápida do pensamento político de
Dyonélio. Acho que dá para ver, através de certos depoimentos, a extrema
lucidez que ele tinha em relação à sociedade em que vivia e ao que desejava
dessa sociedade. Muito obrigada. (Palmas.)
(Não revisto pela oradora.)
O SR. PRESIDENTE: O Sr. Antônio Ribas
Pinheiro, colega do falecido Deputado, gostaria de dizer algumas palavras.
O SR. ANTÔNIO PINHEIRO: Sr. Presidente e demais
ilustres integrantes da Mesa, foram noticiados neste encontro alguns aspectos
da vida de Dyonélio Machado. Gostaria de, em duas palavras, dizer quem foi
Dyonélio Machado como parlamentar.
Fomos eleitos em maio de 1947 e cassados em 1948. Naquele tempo eram
muito difíceis as condições de trabalho, mas posso informar que Dyonélio foi o
mais brilhante e culto parlamentar naqueles dias em que esteve na Assembléia.
Recordo-me perfeitamente que a sua palavra era ouvida com o maior respeito, com
a maior responsabilidade por toda a Assembléia. Era uma Assembléia composta por
grandes figuras da vida política rio-grandense. Lá estavam Oscar Fontoura,
Francisco Brochado da Rocha, Mem de Sá, Victor Graeff e tantos outros nomes que
o povo gaúcho, a sociedade rio-grandense se habituou a conhecer e ouvir. Pois
bem: nesse ambiente, Dyonélio Machado se destacou de maneira brilhante e foi
Líder da Bancada, não por ser o mais velho, mas por ser, indiscutivelmente, o
melhor de nós, o mais combatível, o mais inteligente, o mais brilhante, aquele
que punha mais respeito nos debates que se tratavam na Assembléia. De modo que,
para mim, é um orgulho participar desta solenidade onde está sua família e que,
infelizmente, não será presente a sua admirável companheira, Dona Adalgisa, que
sempre foi uma companheira leal, firme e abnegada ao seu lado, dando-lhe
coragem e amparo moral e amoroso em toda a sua batalha.
Dyonélio recebe esta homenagem com muita justiça. Se estivesse entre
nós, certamente ficaria chocado, pela sua modéstia - como foi frisado pela
professora, aqui. Mas esta homenagem é absolutamente merecida. E nós, que
convivemos com o Dyonélio, sabemos que era absolutamente necessário que isto
acontecesse. Recordo-me de uma ocasião, na Assembléia, em que o Dyonélio fez
uma palestra sobre a fome, com base no livro de Josué de Castro, que recém
tinha sido publicado. Era um assunto subversivo, era um assunto controvertido,
um assunto muito difícil de ser abordado. Pois bem: Dyonélio, pela sua
autoridade, pela sua cultura, pelo seu brilhantismo, trouxe a Assembléia presa
à atenção de suas palavras durante mais de uma hora.
Eu me congratulo com a Câmara, com os presentes. Saúdo a sua família, a
quem eu estive ligado durante vários anos, porque privei da intimidade de nosso
querido amigo Dyonélio Machado. Um abraço ao Paulo, um abraço para a Cecília,
um abraço para o Rubens e para a nossa companheira Amanda, aqui presente. Muito
obrigado. (Palmas.)
(Não revisto pelo orador.)
O SR. PRESIDENTE: Foi ótimo - mais um
esclarecimento da vida dessa pessoa. Saudamos a presença do Ver. Antonio
Hohlfeldt, Líder do PSDB nesta Casa; do Ver. Clovis Ilgenfritz, Vereador do PT
e membro da diretiva da Casa; e a presença do Ver. Artur Zanella, meu
companheiro de Bancada do PDT.
A Vera. Maria do Rosário convida os presentes para uma exposição das
obras de Dyonélio Machado, que se encontra no "hall" desta Casa.
Parabenizamos a Vera. Maria do Rosário por essa belíssima homenagem e
agradecemos a presença de todos, pois o ato, tenho certeza, foi muito
importante para esta Casa e para todos nós. Boa tarde.
Estão encerrados os trabalhos.
(Encerra-se a Sessão às 15h30min.)
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